sábado, março 02, 2019

O rei está de passagem pela Serra Bonita!


Quando buscamos informações na literatura sobre o belo gaturamo-rei (Euphonia cyanocephala), palavras como: incomum, escasso, pouco comum, raro e pouco frequente são recorrentes, nos reportando como pode ser desafiador encontrar esse multicolorido pássaro, ao longo de sua área de ocorrência, nas florestas da América do Sul.

É consenso na literatura, o gaturamo-rei é um pássaro incomum!

De colorido singular, macho e fêmea compartilham um belíssimo padrão azul turquesa brilhante no alto da cabeça e nuca, o que os torna, em minha opinião, inconfundíveis! Apesar do seu colorido chamativo, o gaturamo-rei é um pássaro muito discreto. É preciso estar atento para notar sua presença na paisagem. Seu canto complexo, produzindo sons indistintos (chilreado) pode ser emitido, muitas vezes, bem baixinho, já seus chamados típicos, podem ser a melhor maneira de nota-lo, quando estão meio aos grandes adensamentos de trepadeiras parasitas.

Macho e fêmea de Euphonia cyanocephala compartilham o azul celeste no alto da cabeça e nuca. Reprodução: Handbook of the Birds of the World.

Distribui-se de forma ampla na América do Sul, mas possui ocorrência disjunta e pontual em sua área de distribuição, apresentando três subespécies distintas, de acordo com o Handbook of The Birds of The World:
  • Euphonia cyanocephala pelzelni - ocorre da Cordilheira dos Andes do Sul da Colômbia até o Oeste do Equador.
  • Euphonia cyanocephala insignis - ocorre em áreas de encosta andina no Equador.
  • Euphonia cyanocephala cyanocephala - ocorre na Serra de Perijá na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela; ocorre localmente no Sudeste da Venezuela; localmente através da Guiana, Suriname e Guiana Francesa; Trinidad; nos Andes da Colômbia, Equador Peru, Bolívia e Noroeste da Argentina e também no Paraguai; no Brasil ocorre de forma pontual no estado de Roraima, existem registros isolados no Pará e Mato Grosso e do Leste do Brasil até o estado do Rio Grande do Sul.
O status taxonômico da população meridional do Brasil, Paraguai e NE da Argentina merece ser melhor avaliado, por conta de seu aparente isolamento geográfico, embora existam registros recentes de áreas intervenientes. Alguns autores, como Rolf Grantsau, em sua obra – Guia completo para identificação das aves do Brasil – classifica a subespécie “Atlântica” como Euphonia cyanocephala aureata.

A esquerda, o mapa de acordo com Robert Ridgely mostrando a distribuição disjunta de Euphonia cyanoephala na América do Sul. Mapa da direita, de acordo com o WikiAves, mostrando a distribuição geográfica da espécie no Brasil.

Durante todo esse tempo de mato, percorrendo o Brasil estudando aves, eu não observei esse pássaro em mais do que em cinco oportunidades! O gaturamo-rei é de fato, um pássaro incomum. Uma explicação plausível para essa baixa detecção em campo, a meu ver, se deve por conta do seu comportamento sabidamente discreto, combinado com seus hábitos nomádicos. Euphonia cyanocephala, comprovadamente é uma espécie que apresenta movimentos erráticos, apesar de tais deslocamentos serem ainda mal compreendidos.


Outra peculiaridade de seu comportamento, que chama a atenção e parece ser consenso entre alguns ornitólogos é que a espécie parece estar intimamente associada à frutificação de trepadeiras parasitas, como as ervas-de-passarinho. Coincidência ou não, nas escassas oportunidades em que tive contato com a espécie, em todas(!), Euphonia cyanocephala estava a utilizar a parasita erva-de-passarinho, como recurso alimentar.

Essas plantas quais as ervas-de-passarinho pertencem, constituem um recurso alimentar tão importante para algumas espécies de pássaros, que ganharam um capítulo exclusivo na magnífica obra escrita com desvelo, intitulada – Quatro Estações: História Natural das Aves da Mata Atlântica, uma Abordagem trófica – de autoria do notável ornitólogo Ricardo Parrini (pelo qual nutro profunda admiração). Os movimentos empreendidos pelo gaturamo-rei poderiam estar relacionados à fenologia deste importante recurso alimentar!


Ano passado, após pelo menos uns cinco anos sem avistar a espécie, a encontrei no Bairro rural do Salto, na Serra da Mantiqueira, município de Delfim Moreira-MG, imerso em um portentoso adensamento de erva-de-passarinho “bombando” de frutinhos maduros. Nessa ocasião, estava passeando com meu filho, sem binóculo, ou câmera fotográfica, mas portava a voz da espécie, em meu celular. Tratei então de reproduzir a vocalização para tentar visualizar o indivíduo, que havia sido detectado primeiramente, através dos seus típicos chamadinhos. Após o playback, um macho adulto desceu pra perto da gente, proporcionando bons avistamentos, mesmo sem equipamento apropriado. 

Na ocasião essa observação, foi depositada na plataforma de registros ornitológicos eBird: https://ebird.org/view/checklist/S50364020 Uns dias após esse registro, eu retornei ao local, dessa vez, devidamente equipado, na esperança de rever o pássaro e tentar fazer um registro fotográfico, mas para minha completa frustração, a árvore e a vistosa ramaria de erva-de-passarinho haviam sido completamente podadas!

Cerca de dois meses depois do último encontro, recebo um alerta via WhatsApp. Era meu grande amigo Francisley Ribeiro, comunicando que faziam cerca de dois dias em que ele estava vendo um bandinho de gaturamo-rei, nas imediações do Hotel Serra Bonita. Esse aconchegante hotel está muito bem localizado entre a paz e o verde da Serra da Mantiqueira, no município de Delfim Moreira. Além de ser um local incrível para passarinhar, está rodeado por uma paisagem deslumbrante. Na área do Hotel funciona um premiado haras, especializado em cavalos da raça Quarto de Milha, onde meu amigo Ley trabalha como administrador.

Troquei algumas mensagens com o Ley e marcamos minha ida ao Serra Bonita, já no dia seguinte, afinal, o Hotel dista apenas 40 km de Itajubá! Apesar de já ter observado o bicho em algumas ocasiões, esse parecia ser um momento oportuno para vê-lo novamente e com o objetivo principal desta vez, de tentar fotos da espécie, visto que eu não possuía registros fotográficos dessa espécie, em meu acervo, até então.

Já no dia seguinte, deixei minha esposa no trabalho e parti na melhor das companhias, rumo ao Hotel Serra Bonita, meu filho Túlio me acompanhava. Chegamos lá, encontramos o Ley, proseamos um “cadinho” e seguimos sem demora, para o local onde o bicho estava aparecendo. No caminho, Túlio ia se encantando com os arredores, com os cavalos, com as montanhas, com um cachorrinho que nos acompanhava e ia narrando o que avistava durante nossa caminhada até a área.

Eu, Ley e Túlio no ponto de avistamentos do gaturamo-rei. Foto: Bruno Rennó.

Túlio e um belo filhote de Pastor da Mantiqueira. Foto: Bruno Rennó.

Chegamos no ponto onde os gaturamos-rei estavam aparecendo, um pastinho, com árvores esparsas, em borda de floresta alto-montana, com muitas araucárias se esparramando através da paisagem. Olho para cima e vejo algumas árvores tomadas por ervas-de-passarinho em frutificação! Mal apeamos as tralhas e o Ley já exclama alertando que os bichos estavam por ali! Foi aquela correria... Pega o binóculo, regula a câmera, posiciona o playback e bora “trabalhar” o bicho!

As árvores do local tomadas pela trepadeira parasita, erva-de-passarinho. Foto: Túlio Rennó.

Era um bandinho, um macho adulto (em muda de plumagem das penas de contorno) acompanhado de outros dois exemplares, que até agora não sei se eram fêmeas, ou jovens, pois estavam com pouco azul no alto da cabeça. O bandinho estava alto, na copada, comendo avidamente os pequenos frutos da erva-de-passarinho! Tocamos um pouco do playback e para nossa surpresa os bichos se ouriçaram e despencaram em nossa direção, desceram na altura de nossos olhos! Daí foi só alegria e cliques para todo lado! É tão bom quando os bichos colaboram com a gente!

Macho de Euphonia cyanocephala fotografado durante a visita a Serra Bonita. Foto: Bruno Rennó.
Macho de Euphonia cyanocephala em outra posição durante a visita a Serra Bonita. Foto: Bruno Rennó.

Provavelmente um exemplar jovem de gaturamo-rei registrado durante visita ao Serra Bonita. Foto: Bruno Rennó. 

Nesse meio tempo, meu pequeno, me indaga que gostaria de tirar fotos também! Na hora, saquei meu celular e deixei na mão dele no modo câmera e quando vejo, ele sai disparando em tudo o que seus curiosos olhinhos miram! Quando os gaturamos voaram pra longe, pego pra olhar o celular e para minha surpresa, meu moleque de apenas 3 anos, leva um baita jeito para fotografia! Ele fez umas fotos ótimas, talvez por eu assumidamente ser um papai super babão e coruja! Mas que o moleque leva jeito pra coisa, ah isso leva!

Eu e meu grande amigo Franciley Ribeiro comemorando as boas chances que o bandinho de gaturamo-rei nos deu. Foto: Túlio Rennó.

O filhotão de Pastor da Mantiqueira e a paisagem ao nosso redor. Foto: Túlio Rennó.

Preparando o playback. Foto: Túlio Rennó.

Companhia canina! Foto: Túlio Rennó.

As perspectivas do Túlio. Foto: Túlio Rennó.

Ley e eu observando o bandinho de Euphonia cyanocephala se alimentar. Foto: Túlio Rennó.

Os detalhes na perspectiva do meu pequeno. Foto: Túlio Rennó.

Parte do equipamento de campo, Foto: Túlio Rennó.

A presença marcante de araucárias na paisagem. Foto: Túlio Rennó.

O fragmento florestal que margeia o pastinho. Foto: Túlio Rennó.

Observar aves é uma mistura de conhecimento, determinação e sorte. Um pouco de conhecimento, porque, sempre há a necessidade de se estudar sobre determinada espécie que desejamos procurar. Buscar sobre informações na literatura sobre a espécie que se deseja observar pode ser útil durante as buscas em campo. Saber previamente qual ambiente ela prefere, qual tipo de vegetação ela habita, se ela tem algum hábito específico, é aconselhável conhecer seu repertório vocal para facilitar sua detecção; Determinação, pois observar aves é algo completamente imprevisível, um dia jamais é igual ao outro. Às vezes é necessário esperar por horas, dias, a frustração pode ser uma constante, principalmente, quando buscamos por aves raras em seu habitat natural. Muitas vezes é preciso voltar ao mesmo local, uma, duas, três vezes e dependendo do caso, é necessário até, dezenas de visitas para conseguir sucesso em observar um pássaro desejado; E sorte, o observador de aves precisa estar sempre acompanhado de uma boa dose de sorte, pois em muitos casos, quando a sorte está ao nosso lado coisas “inacreditáveis” podem acontecer. Um pássaro de hábitos ariscos pode do nada, chegar muito perto de você e não se importar com a sua presença, ou ainda um pássaro que vive enfurnado em meio a vegetação super densa e não "nunca" para quieto, pode sair e ficar parado no limpo em um galho exposto, por alguns instantes. Ou ainda você pode chegar em deterinado local e o bicho que você busca já estar zanzando por ali e responder de imediato o playbcak facilitando o trabalho. A sorte sempre é uma boa aliada do observador de aves!

Como sempre há motivos para passarinhar, essa é uma boa oportunidade para registrar o incomum gaturamo-rei, que está de passagem pelo Hotel Serra Bonita. Pra quem tiver interesse, o bicho ainda está por lá, sendo ainda uma oportunidade bacana de passarinhar nessa bela porção da Serra da Mantiqueira. Pra quem, por acaso, passar por lá desejo uma boa dose de sorte e sempre que forem passarinhar não se esqueçam de contar com essas duas premissas principais: determinação e sorte!  

3 comentários:

Fabiana Soares disse...

Muito bom, Bru!!!
Demais as fotos do Tulinho.

Anônimo disse...

Lendo seu texto ficou pensado o quanto a gente aprende trocando experiências, me fez recordar quando encontrei por sorte debaixo de uma árvore do cerrado no Alto da chapada, más próximo de um desfiladeiro com árvores muito altas, bem comum aqui no Parque Estadual da Lapa Grande. Encontrei este bichinho e com pouca experiência que tenho já sabia que era raro em nossa região.
Um grande abraço do amigo Warley Miranda e parabéns pelo blog.

Unknown disse...

Parabéns Bruno pelos seus relatos precisos sobre essa ave rara.
Túlio já demonstrando seus dons, para o bem da natureza.